domingo, 7 de setembro de 2014

O paraíso

Nem o paraíso criado por Deus, tampouco Pasárgada seriam o suficiente para realizar seu sonho dantesco, motivo de sua talvez glória e total condenação.
Seus devaneios a amarguravam cada vez que pensava naquele beijo, último toque que provara do amor fugaz que nunca pôde viver. Seu olhar era um mesclado de pureza e malícia, dissimulada e sutil, ao mesmo tempo em que o verde musgo cintilante de seus olhos a denunciava.
Para ela, noite para ser dormida era o mesmo que o sol não nascer. Meramente impossível. O tique-taquear do relógio seguia o compasso de sua respiração, enquanto alguém lá fora conversava com o vento.
Pôs a mão direita no vão ao seu lado, e o vazio do espaço solidarizou-se com o do coração. A cama, cujo lado direito não havia ninguém para preenchê-la a fez estremecer. Certamente nunca haverá ninguém ali, e esse ninguém tinha nome, sobrenome e um endereço por ela desconhecido.
E então, ela o viu. Seu sorriso maroto deliciou-a por inteiro. Não o ouvia, e a não ser que estivesse deilirando, podia jurar que viu seus lábios carnudos formarem as palavras "pequena Mary".
Sua respiração ficou lenta, e os olhos se fecharam lentamente. Se morresse naquela noite partiria feliz por ter a imagem dele fresca na memória.
- oh, senti saudades querido E...
O despertador tocou. A noite se fora, e levou consigo seu "querido E...".
E como todas as manhãs fazia, abriu seus olhos de ressaca, penteou os cabelos e perfumou-se. A esperança de revê-lo nunca a deixou, e quem sabe sua tão sonhada Pasárgada se encontrasse em uma esquina, em um bar qualquer, onde seu querido tomava um delicioso café matinal. Porque o paraíso é onde ela é "amiga do rei, e terá o homem que ela quiser, na cama que ela escolher."

sábado, 6 de setembro de 2014

Na calada da noite

É na madrugada que a distância entre nossas limitações diminui. É na madrugada que soluços e suspiros são abafados pelo travesseiro. É na madrugada que abrimos os olhos e idealizamos um mundo ideal. Ou letal.

Miranda.

O tempo, o sol e o vento.

Faz calor aqui dentro. A ironia é que o tempo lá fora nunca esteve tão frio. Através dos reflexos embaçados da janela, vejo pessoas, e até mesmo coisas tão gélidas como a brisa matinal. Durante algum tempo, também fui assim. Tempestuoso, imprevisível que nem o vento. Que é frio. Carregado. No ritmo de um assobio cansado.
A grande diferença, é que o vento carrega tudo consigo. Mágoas, angústias e até mesmo coisas boas. Eu os detinha, era uma barreira que impedia quaisquer sentimentos seguirem seu caminho. Sobretudo os ruins.
A visão literal sempre fez mais sentido para mim, no entanto, tudo fica mais bonito quando há uma pitada de metáfora na história, dá um gosto agridoce ao sofrimento, o qual, felizmente já não existe mais. Derrubei as barreiras e deixei as coisas seguirem seu curso natural. De vento, fui promovido a sol, e o calor que há em mim derrete todo e qualquer tipo de ressentimento que possa restar aqui.
É confortável estar aquecido, enquanto muitos enfrentam sua pior nevasca interna. Eu, antes tão comum, cabisbaixo e sorrateiro, hoje tenho um diferencial. A felicidade que me consome. Por um tempo, será bom ter toda essa energia só para mim. Não é egoísmo, eu prefiro chamar de amor próprio.
A chuva começou a cair. Pessoas corriam e procuravam abrigo, gotas de chuva apostavam corrida na vidraça da lanchonete. Mais adiante, o mar se escondia por detrás da neblina.
Um garçom rechonchudo, com barba por fazer e olhos de ressaca aproximou-se.
 – Gostaria de alguma bebida para se aquecer, meu jovem? Café é um ótimo companheiro do frio.
Semicerrei os olhos e sorri.
 – O tempo nunca esteve melhor, e não me refiro à chuva lá fora. Um copo de água com gelo, por favor.


De Miranda, para meu querido amigo à distância Alecs.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

To Dream

⁠⁠⁠A brisa noturna faz a cortina de meu quarto dançar. O coração palpita, eu suspiro. Uma sinfonia perfeita. Eu, a brisa e você. Nossa música, e sei que de algum lugar pode ouvi-la tocar. A propósito, sei de muitas coisas a seu respeito. Como por exemplo, se soubesse que estou com frio nesse momento cederia sua blusa. Assim como fará quando nos conhecermos naquele barzinho que a galera se reúne as sextas, ao som de Nirvana. Em uma noite úmida quando eu, desastrada toda vida esbarrar em um garçom que derrubará cerveja em mim. Meus óculos tortos, e a blusa ensopada o irão fazer gargalhar.
É tão gostoso ouvir seu riso da minha varanda, bebendo chá. E se você estivesse aqui, faria uma careta, daria as costas e iria tomar uma xícara de café bem forte. Claro, você detesta chá, como diz, prefere a cafeína correndo nas veias, dando-lhe energia. Fazendo de seu riso prazeroso ainda mais forte.
Suas tentativas de me beijar com bafo de café são pura provocação, mas eu sempre vou me distrair e você aproveitará para me roubar um beijo. Roubará meu coração, meus beijos e o lado vazio da minha cama. E eu? Serei ladra de quê? Das suas blusas, dos seus sorrisos e olhares.
Nas manhãs de domingo, me acordará às seis da manhã com um bom dia prolongado, só porque sabe que odeio acordar cedo. E quando eu for para a cozinha comer, meu chá estará pronto, e um belo pedaço de bolo de chocolate para acompanhar. Você me conhece melhor do que a mim mesma, e saberá que nada como comida para curar meu mau humor dominical, e principalmente, matinal.
Durante algum tempo será somente nós dois. Eu cuidando das flores enquanto você lava o carro e com um sorriso malicioso lança um jato de água em minha direção. Sim, isso vai me irritar muito, e você irá me beijar, e esquecendo-se do carro, da água, das flores, iremos para o quarto e lá, provaremos nosso amor mais fugaz. Sem palavras. Só suspiros.
Teremos três filhos e nenhum cachorro. Você não gosta, embora eu queira e insista muito.
Faremos viagens em família, ao som de rock ou reggae, tanto faz, nisso concordamos. Você fará o volante de bateria e as crianças cantarão, enquanto eu olho para o céu, mais limpo do que nunca, com o brilho do sorriso perdendo somente para o Sol.
E aí, vamos envelhecer. Eu ficarei com rugas, e você calvo. As crianças crescerão, seguirão suas vidas e a casa voltará a ser nossa. Apenas com o barulho da chaleira e do rádio ao lado de sua poltrona, enquanto lê o jornal.
Eu passarei a beber café, e você começará a apreciar o chá. Mas hoje, prefiro devanear com minha natureba. Eu queria sua blusa, ou melhor, seu abraço. Faz frio aqui fora. Está na hora de entrar. Um aroma invade o quarto e sei que lá em baixo, você toma café. Desço sorrateira, beijo sua careca e sorrio enrugada. Estendo minha xícara e você logo entende e faz o mesmo. Um brinde!
Abraçados subimos, e seus braços esquentam da mesma forma que sua blusa me esquentou naquela noite úmida, enquanto eu fedia a cerveja. Está tudo no seu devido lugar. Eu dentro do seu abraço, você no lado que já não é mais vazio na minha cama.
– Só para você saber, continuo odiando aquela natureba que você chama de chá.
Eu sorrio, e tenho certeza de que você ouviu minha conversa com o vento. A maravilha de ter te conhecido é que vez ou outra, para fugir da rotina nossas almas se encontram para devanear.

domingo, 11 de maio de 2014

Olhos de Águia

Há quem diga que os olhos são a porta da alma, nada escondem, nada disfarçam e dizem o que a boca prefere calar. Antes de tudo, esclareço uma coisa. Não estou generalizando, afinal, somente um dentre tantos olhares me encanta, faz-me perder os sentidos, me hipnotiza. Há quanto tempo mesmo? Três anos.
É. Realmente, uma hipnose que só os melhores conseguem fazer. Sinceramente, você não é o melhor, tampouco alguém que eu me orgulharia ao apresentar para meus pais e amigos. Mas, automaticamente você já se apresentou à minha vida, puxou uma cadeira e sentou-se para ver minha regressão. Esse olhar desperta o melhor e o pior de mim. Desperta meus instintos mais ardentes, fumegantes como uma chama, que se fragiliza até apagar quando uma lágrima corre em meu rosto.
Ameaçador, com um toque de malícia e desejo. Basta! É o necessário para eu me render, sem ao menos uma palavra ser pronunciada. Já não é mais preciso um “eu te amo”, na verdade, nunca precisou. Me ter torna-se tão fácil como respirar.
Seu instinto de caçador fere meu coração, a única presa que (in)felizmente não é seu alvo mais. Seus olhos de águia esverdeados já não provocam o mesmo efeito, pois esperança tornou-se apenas uma palavra cuja cor representativa é verde. Sem mais comparações ao seu olhar. Aqui jaz o amor, enquanto minha felicidade padece.
Não é posse. Deixou de ser amor. A saudade? Sempre me acompanha. Então, o que me acorrenta a seu destino, tira meu sono, faz-me sua prisioneira? Já sei. Seu olhar... Mas, vai além.
Nem em sonhos você imagina que fui predestinada a saber de seus dias, sentir suas dores, de ver seu semblante indiscretamente rondando minha mente e dizendo “Ajuda-me!”.
Temo que seja assim para sempre. E que não importa o quanto eu fuja, seu olhar de águia sempre me alcance a quilômetros de distância. Temo continuar vidrada, navegando, sem me dar conta de que até mesmo no raso posso afundar.

Mas, meu maior medo é que essa hipnose sugue meus dias, minha felicidade, o resto de tempo que mereço por direito. Suplico apenas que tenha dó de mim, das lágrimas e sorrisos que perdi, do tempo que nunca mais voltará a correr. Peça socorro, faça sinal de fumaça, estale os dedos, mas por favor, não olhe para mim. 


quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Amargura Adocicada


Trabalho na delegacia de Greendway há quinze anos. Jamais relato algum chocou tanto minha pacata cidadezinha quanto a que vos escrevo agora. Se descobrirem o que estou fazendo posso ser preso, mas, impossível não escrever a história mais confusa que ouvi em toda minha vida. É triste saber que um atestado de óbito está em minhas mãos enquanto um pai chora desesperadamente na pequena saleta ao lado, procurando o consolo no meio do próprio desespero.
Como eu sei de tudo? Ora, ajudei meu amigo Dave a fugir da prisão, não me orgulho disso, mas, em troca ganhei sua lealdade e confiança. Ok. Além de quebra de sigilo, ajudei um prisioneiro a fugir, mas quanto a isso penso depois, afinal ainda pergunto-me o que eu fiz da vida durante todo esse tempo a não ser relatar histórias frustrantes em uma delegacia caindo aos pedaços.
“De um lado para o outro Dave parecia enlouquecer perto de tamanha inquietação. Ficar engaiolado durante todo aquele tempo estava o fazendo pirar. Inúmeras vezes tentou fugir, todas as tentativas foram falhas. Até que se lembrou de um amigo, o Sr. Watson (Que no caso sou eu), um velho escrivão que o ajudara certa vez em que fora incriminado.
Sem muitas dificuldades conseguiu se comunicar com o coroa calvo de sorriso amarelo. Relutei um pouco, mas acabei cedendo. Eu era seu passaporte para sair dali. A segurança não era muito reforçada, cidade pequena, preocupação de menos. Tolos. Um uniforme de guarda, o disfarce perfeito, a naturalidade. Pronto. Dave estava pronto para bater as asas.
Sem conhecer muito de Greendway Dave seguiu pelo caminho das montanhas, uma paisagem perfeita repleta de vales esplêndidos. Já era noite quando avistou um casebre de madeira pairando sobre um lago cuja água refletia o perfeito reflexo da Lua.
A pequena passarela que impossibilitava o contato dos pés com a água fez com que Dave duvidasse que a casa fosse abandonada. Sorrateiramente verificou se havia alguém e só depois de certificar-se que não, empurrou a porta que estava entreaberta.
Por incrível que pareça, era tudo incrivelmente limpo e simples. Não havia nada além de uma poltrona, que ficava de frente para a janela com vista para o vale, um ventilador e uma cama no canto inferior da casa. Não havia eletricidade. Sem se preocupar se o dono chegaria a casa pela manhã deitou na cama e dormiu o sono dos justos. (apesar de não ter nada de justo naquele homem). Ah, Dave Filler. Acusado de estelionato e alguns furtos. Extremamente frio e calculista. Robusto, mal encarado e loiro, no entanto seus cabelos não lembravam a luminosidade do Sol, tampouco brilhavam, era acinzentado assim como seus olhos que vez ou outra ameaçavam tempestades violentas.
Já era manhã quando acordou. Pela primeira vez em anos se dera o luxo de acordar tarde. Passava das nove quando olhou em seu relógio de pulso, “presente” que conseguiu em uma relojoaria na cidade vizinha.
Abriu e fechou os olhos inúmeras vezes pensando estar em um sonho quando viu uma silhueta por detrás da poltrona confortável voltada para o Sol. E o mais estranho, quem quer que fosse não havia se incomodado nem um pouco com a presença de um estranho. Antes que ele pudesse se levantar, a moça ergueu-se e refez seu caminho de volta, sequer olhou para a cama, como se não houvesse ninguém ali. (Ainda bem!)
Uma pena ela não tê-lo notado, ou fingir não notar por ser esnobe, pois aquela moça... UAU! Não existia palavra que Dave conseguiria pronunciar para expressar aquela beleza especial. Seus olhos incrivelmente verdes e grandes pareciam pular de seu rosto envolvendo-o naquela esperança em forma de olhar que apossava-se e ofuscava todo e qualquer brilho que ousava ser mais forte do que os dela. Os cabelos negros caiam-lhe pelos ombros enquanto sua pele branca emanava um perfume maravilhoso. Enquanto o cheiro ainda invadia suas narinas perguntava-se como tanta beleza acumulava-se naquele pingo de gente. Ela era baixa e delicada, e sua expressão era aturdida e confusa. O que a deixava mais linda. Pensou.
O ronco de sua barriga afastou-lhe aquele pensamento e resolveu sair para comer algo. Como o presídio ficava a alguns quilômetros da cidade, não haveria problema já que nunca havia aprontado por ali. Até então.
Comprou algumas roupas e comida com o dinheiro que restava em sua conta e passou o dia perambulando pela cidade, até que anoiteceu e voltou para o casebre. Banhou-se no lago, comeu um sanduíche olhando para o céu estrelado, pensando até quando aguentaria uma vida de fugitivo. Adormeceu absorto e abriu os olhos somente na manhã seguinte quando o Sol começava a surgir.
Sentou-se na cama e ouviu passos. Receoso tentou se esconder, mas viu que era a moça do dia anterior. A jovem entrou e ignorou completamente sua existência e Dave, perplexo a fitava virando a poltrona de frente para o grande ventilador e observando-o girar. Que diabos aquela garota estava fazendo? Pensou. A propósito, ela usava a mesma roupa do dia anterior, um vestido florido que pegava até os joelhos. Estranha.
 – Oi. – Dave procurou interagir timidamente, ficar no mesmo lugar que alguém e não dizer nada era desconfortável. Apesar de gostar de solidão a moça era linda, não havia como querer distância.
 – Ella. – A moça respondeu rapidamente sem tirar os olhos de o movimento circular que ganhava velocidade.
 – Ela quem?
 – Nome. Meu nome!
Sua voz saia feito um sussurro quase inaudível, enquanto seus olhos pareciam rodar junto com as Hélices do ventilador.
 – Ah, meu nome é Dave. Prazer Ella, você é muito bonita.
Ella não se importou com o elogio, pareceu nem ouvi-lo. Dave procurou ganhar a atenção da moça algumas vezes, mas falhou. Ele passou a observá-la e pôde jurar que ela ficou imóvel cerca de vinte minutos. Assim que seus olhos se encontraram, rapidamente ela baixou o olhar que se fixou na camisa vermelha que ele vestia. Cabisbaixa ela parecia perder-se naquela cor e lentamente caminhou com as mãos estendidas até tocar na camiseta.
Dave achou aquilo tudo muito estranho, mas não recusou o toque. Sinceramente, sua vontade era gargalhar, mas a moça parecia realmente interessada no que havia naquela blusa, especialmente embaixo dela. Porém, ela não fez movimento nenhum parecendo que iria tirá-la o que o desapontou.
 – Eu gosto de vermelho.
 – Por que você não olha nos meus olhos enquanto fala?
 – Não gosto.
Subitamente ela afastou-se. Parecia agitada e levou às mãos a cabeça enquanto andava de um lado para o outro até encontrar o caminho da porta e sair. Ele realmente estava intrigado com o comportamento da moça que parecia passar por alguma perturbação.
E realmente passava. Ella era autista. Encontrei Dave naquela tarde e eu mesmo o contei. Ele havia me perguntado sobre uma jovem de lindos olhos esverdeados. Contei-lhe tudo o que sabia e pedi para que ele se afastasse da moça, ela era facilmente influenciada além de ser muito sensível. Disse também que o pai dela, o Sr. Owen construiu aquela cabana para que a filha pudesse observar as montanhas, Ella adorava e durante uns tempos era a única coisa que a acalmava.
Obviamente Dave não me contou com detalhes os fatos do dia anterior quando conheceu a moça, afinal, sempre foi um homem de poucas palavras. A única expressão que podia ver em seu rosto era curiosidade e fascínio por alguém que despertou nele seus instintos mais sacanas.
Por favor, não me peçam detalhes, minha versão é a mais simplificada possível e a única que poderão ler. O que se sabe é que com o passar dos dias Dave tentou, inúmeras vezes conquistar Ella, que tampouco se importava com os flertes cada vez mais insistentes.
As aproximações a incomodavam e ela se afastava de qualquer contato. Muitas vezes nem percebia a presença do homem que estava ficando louco por estar tão perto e ao mesmo tempo tão longe de sua mina de tesouro.
Com o passar do tempo, as mudanças começaram a ser notáveis em ambos. O caso de Ella estava mais estável. Quanto a Dave, seu desejo de entender aquela mente assustada e inocente tomou lugar ao desejo carnal que o fez se aproximar inicialmente. Segundo ele, nunca tentou beijá-la, apenas algo o deixava imensamente triste. Não poder ver aquele feixe de luz esverdeada atingir seu olhar frio e sem vida quando ela balbuciava. Ella ficava na cabana praticamente a tarde inteira, muitas vezes em silêncio tendo a respiração de Dave como base para continuar hipnotizada sentada em sua poltrona.
Foi no dia quinze de março que tudo mudou. Passava das oito da manhã quando um movimento estranho cercou a casa, o que alertou Dave. De súbito ouviu-se um estrondo. Um tiro.
 – Finalmente o encontrei Filler. Estava brincando de casinha é?!
Não faço ideia de quem era. Talvez um dos muitos inimigos que Dave fez por aí a fora. O que interessa é que o rapaz morreu com um tiro certeiro no coração. Filler o matou, embora tenham trocado uns tiros.
Dave havia esquecido completamente de Ella, que chorava compulsivamente enquanto mordia as mãos balançando de um lado para o outro. Suas mãos estavam tapando os ouvidos, o barulho do tiro ainda ecoava pelo pequeno casebre. Com muita dificuldade ele conseguiu acalmá-la, enquanto a moça ofegante disse:
 – O moço caiu!
 – Acalme-se Ella, ele está dormindo. Eu o coloquei para dormir, mais nada. Vá para casa agora.
Aturdida ela refez seu caminho de volta e Dave a acompanhou até a cidade. Estava baleado e veio até minha casa pedir ajuda com os curativos. Quase ninguém soube do ocorrido e com muita dor Dave demorou a pegar no sono, a face assustada de Ella rodeava sua mente e ele tinha vontade de pegá-la no colo para vê-la sorrir timidamente. O sorriso dela era radiante, e não foi o Dave quem me contou, até um cego saberia dizer a qualquer um que perguntasse o quanto Ella era linda.
Na manhã seguinte Ella o observava atentamente enquanto ele revirava-se na cama. Naquele dia, ambos passaram todo o tempo juntos, ela não entendia o que se passava, mas Dave quase a idolatrava, feito um anjo, um doce anjo longe de qualquer amargura.
Filler estava com uma dor insuportável onde havia levado o tiro, bem na coxa esquerda e Ella segurou sua mão o tempo todo, tão forte que parecia sentir a dor juntamente com ele.
Pela primeira vez na vida Dave sentiu-se amado por alguém, um alguém que não sabia o que era amar, incapaz de demonstrar quaisquer demonstrações de afeto, sentimento e amor. Mas Ella gostava da companhia de Dave, e mesmo sem ter o que dizer, ficava ali, observando-o. Ora acariciando sua barba, ora mexendo em seus cabelos ralos. Era bonito e recípocro o que ambos sentiam, mas não havia chance alguma desse sentimento fluir, o destino não quis.
Já estava anoitecendo e os dois continuavam ali. Com certeza o pai de Ella estaria morto de preocupação, no entanto, vez ou outra ela dormia no casebre, por isso a cama. Não havia com o que se preocupar.
Dave parecia estar definhando com o que parecia ser um leve ferimento, Ella parecia se importar, mas, sua atenção sempre voltava-se para outra coisa. A arma de Filler estava em cima da poltrona.
 – Ella, vá para casa, já vai ficar tarde.
 – Você não dorme. Vou te fazer dormir.
 – Estou sem sono.
Ignorando o comentário Ella pegou a arma, sorriu docemente e pela primeira vez olhou fixamente nos olhos de Dave.
 – Boa noite!
Um tiro que atingiu-lhe o pulmão. Rapidamente e ofegante ele me ligou e contou-me o relato, disse que ela não havia culpa e saiu de uma forma tão inocente que parecia não ter cometido um assassinato. Liguei para uma ambulância o mais rápido possível. Infelizmente era tarde demais. O verde olhar de Ella não o alcançaria nunca mais.
...
Preciso de água, horas em frente a esse velho computador acaba comigo e ainda a pior parte está por vir. Irei delatar o depoimento do Sr. George Owen, pai de Ella. É preciso coragem e fôlego, alguém precisa estar calmo para confortar um pai desolado.
 – Tudo bem senhor, diga-me pacientemente tudo o que aconteceu naquela noite. Sei o quanto é difícil, acredite, para mim também é.
Ele suspirou, secou a última lágrima que teimava cair e em um fio de voz começou...
...
Ella chegou um pouco assustada, mas nenhum comportamento estranho. Jantou e foi se deitar. Minha filha sempre fora dependente em certos aspectos, seu caso de autismo não era dos graves, há vários estágios de autismo e felizmente o dela era estável.
Ainda via televisão quando ela foi pelo menos umas três vezes beber água. Nunca soube muito como lidar com minha filha, infelizmente minha esposa morreu no parto e fiquei meio desorientado quanto a esse tipo de contato. Dava-lhe amor, mas minha forma um pouco dura a fazia ser um pouco distante de mim. Perguntei o que ela tinha e ela disse que não conseguia dormir.
 – Filha, quer que eu leia uma história?
 – Não, eu já sei como durmo. Boa noite papai!
 – Boa noite querida. Durma com os anjos.
Dei de ombros e continuei vendo o noticiário. Um barulho veio do quarto de Ella. Um tiro. Corri imediatamente, mas era tarde. Não sei como, mas havia uma arma em suas mãos pequenas enquanto o sangue sujava os lençóis. Entrei em desespero. Realmente ela dormiu com os anjos.”
...
Ella Owen, um anjo, a moça mais bela que meus olhos podiam contemplar. Quem diria que em meio a tanta doçura haveria a amargura de matar friamente um “amigo” e em seguida fazer o mesmo consigo? Foi por pura inocência, e por um erro de Dave que mostrou-lhe como se põe alguém “para dormir” usando uma arma. Contudo, prefiro acreditar assiduamente na hipótese que eu mesmo criei: Dizem que autistas não tem consciência do que fazem, o mundo os privam de viverem por si próprios. Talvez na ingenuidade Ella tenha encontrado a maneira de viver com Dave, sem preconceito, sem barreiras e sem empecilhos. Ambos dormiram e nos sonhos talvez eles possam viver uma vida normal, juntos. Talvez não, tenho certeza. Para todo o sempre.

...

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Reencontro.

- Senhora, sua passagem, por favor!
Desculpei-me pela distração e entreguei o papel um pouco amassado. Estava encantada demais olhando pela janela do ônibus minha vida retroceder. Sim, em cada rua que passava via-me uma menina que não sabia o que esperar da vida, vendo o tempo passar. Anos depois retornei ao ponto de partida, tudo tão nostálgico.
Desci no ponto em frente à escola que fiz o ensino fundamental e parei para observar os jovens animados que saíam da escola. À medida que caminhava em direção a casa de meus pais reconhecia alguns rostos, mas ninguém que de fato chamasse minha atenção.

Distraidamente e absorta com as melancolias que me cercavam atravessei a rua e um carro freou em cima de mim. O rapaz, atencioso saiu carro para se certificar que eu estava bem e assim que nossos olhares se cruzaram meu coração parou. A avenida parou. Ele sorriu e suspirou aliviado, coincidentemente eu também. Não porque ele não havia me atropelado e por eu estar bem, nosso alívio foi saber que o destino finalmente estaria cumprindo sua promessa, fez com que a brisa nos arrastasse até aquele lugar mágico, onde tudo começou, onde tudo provavelmente terminaria. Dessa vez, terminaria bem.